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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Eduardo Galeano

Este grande escritor uruguaio, famoso pela obra Veias Abertas da Ámérica Latina, onde fica célebre a frase "a Espanha tinha a vaca, mas os outros é que tomavam o leite", demonstrando que mesmo explorando suas colônias americanas, a Espanha não soube reproduzir essas riquezas ( com a industrialização, por exemplo)
Mas há outra grande obra, Futebol ao sol e a sombra. Abaixo, uma das tantas crônicas deste livro.

AS ORIGENS (pgs. 25-27)

No futebol, como em quase tudo, os primeiros foram os chineses. Há cinco mil anos, os malabaristas chineses faziam dançar a bola com os pés, e foi na China que tempos depois se organizaram os primeiros jogos. A meta ficava no centro e os jogadores evitavam, sem usar as mãos, que a bola tocasse no chão. De dinastia em dinastia continuou o costume, como se vê em alguns relevos anteriores a Cristo, e também em algumas gravuras posteriores, que mostram os chineses da dinastia Ming jogando com uma bola que parece da Adidas.
Sabe-se que em tempos antigos os egípcios e os japoneses se divertiam chutando a bola. No mármore de uma tumba grega de cinco séculos antes de Cristo, aparece um homem fazendo embaixadas com a bola no joelho. Nas comédias de Antífanes, há expressões reveladoras: bola longa, passe curto, bola adiantada... Dizem que o imperador Júlio César era bastante bom com as duas pernas, e que Nero não acertava uma: em todo caso, não há dúvida de que os romanos jogavam algo bastante parecido com o futebol enquanto Jesus e seus apóstolos morriam crucificados.
Pelos pés dos legionários romanos a novidade chegou às ilhas britânicas. Séculos depois, em 1314, o rei Eduardo II estampou seu selo numa cédula real que condenava este jogo plebeu e alvoroçador, “estas escaramuças ao redor de bolas de grande tamanho, de que resultam muitos males que Deus não permita”. O futebol, que já se chamava assim, deixava uma fileira de vítimas. Jogava-se em grandes grupos, e não havia limite de jogadores, nem de tempo, nem de nada. Um povoado inteiro chutava a bola contra outro povoado, empurrando-a a pontapés e murros até a meta, que então era uma longínqua roda de moinho. As partidas se estendiam ao longo de várias léguas, durante vários dias, à custa de várias vidas. Os reis proibiam estes lances sangrentos: em 1349, Eduardo III incluiu o futebol entre os jogos “ estúpidos e de nenhuma utilidade”, e há éditos contra o futebol assinados por Henrique IV em 1410 e Henrique VI em 1547. Quanto mais o proibiam, mais se jogava, o que não fazia mais que confirmar o poder estimulante das proibições.
Em 1592, em sua Comédia dos Erros, Shakespeare recorreu ao futebol para formular a queixa de um personagem:
- Rodo para vós de tal maneira... Tomai-me por uma bola de futebol? Vós que me chutais para lá, e ele me chuta para cá. Se devo durar neste serviço, deveis forrar - me de couro.
E uns anos depois, em Rei Lear, o conde de Kent insultava:
- Tu, desprezível jogador de futebol!
Em Florença, o futebol se chama calcio, como se chama ainda em toda a Itália. Leonardo da Vinci era torcedor fervoroso, e Maquiavel jogador praticante. Participavam equipes de 27 homens, distribuídos em 3 linhas, que podiam usar as mãos e pés para golpear a bola e estripar os adversários. Uma multidão assistia às partidas, que se celebravam nas praças mais amplas e sobre as águas congeladas do Rio Arno. Longe de Florença, nos jardins do Vaticano, os papas Clemente VII, Leão IX e Urbano VIII costumavam arregaçar as batinas para jogar calcio.
No México e na América Central, a bola de borracha era o sol de uma cerimônia sagrada desde uns mil e quinhentos antes de Cristo; mas não se sabe desde quando se joga o futebol em muitos lugares da América. Segundo índios da selva amazônica da Bolívia, tem origens remotas à tradição que os leva a correr atrás de uma bola de borracha maciça, para metê-la entre dois paus sem fazer uso das mãos. No século XVIII, um sacerdote das missões jesuítas do Alto Paraná, descreveu assim um costume antigo dos guaranis. “Não lançam a bola com a mão, como nós, mas com a parte superior do pé descalço”. Entre os índios do México e da América Central, a bola era golpeada geralmente com o quadril ou com o antebraço, embora pinturas de Teotihuacán e de Chichén-Itzá revelem que certos jogos se chutava a bola com o pé e com o joelho. Um mural de mais de mil e quinhentos anos mostra um avô de Hugo Sánchez jogando como canhoto em Tepantitla. Quando o jogo terminava, a bola culminava sua viagem: o sol ao amanhecer depois de atravessar a região da morte. Então, para que o sol surgisse, corria o sangue. Segundo alguns entendidos, os astecas tinham o costume de sacrificar os vencedores. Antes de cortar-lhes a cabeça, pintavam seus corpos em faixas vermelhas. Os eleitos dos deuses davam seu sangue em oferenda, para que a terra fosse fértil e o céu generoso.





Extraído de GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. Tradução de Eric Nepomuceno e Maria do Carmo Brito. Porto Alegre: LP&M, 2002

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